terça-feira, 16 de agosto de 2011

Cicatrizes

"  - Nossa ele conhece todo mundo! Há quanto tempo ele está aqui?
    - Três anos.
    - Você sabe o que aconteceu?
    - Eu trabalho há pouco tempo aqui e nós não gostamos de ficar falando sobre isso. Ele pode ouvir. Não é legal.
    - Mas queimou todo o corpo? Ele é tão pequeno!
    - Sim, queimou todo o corpo. O Ricardo tem só nove anos. Imagina a agonia desse garoto, mas ele diz que não lembra. Mas também, olha como isso coça. A pele toda queimada e ele esta crescendo. Perdeu toda a elasticidade e agora a pele terá que esticar. Ele, ainda, vai sofrer muito…
 
Não contive as lágrimas. Estava angustiada por um mal que sentia um mal que era tão simples comparado com o que aquela criança sofria. Sem querer perguntei novamente o que havia acontecido.
    - O que eu sei é que foi o pai quem botou fogo nele. Eu acho que está preso. A mãe trabalha. Só vem às vezes porque tem que sustentá-los.
A enfermeira falava num tom tão normal. Eu imagino que via isso freqüentemente. Já tinha visto muitos sofrendo e morrendo bem diante dos seus olhos. Também não estou aqui para julgá-la. Mas observei…
 
Ao voltar para o meu banco para esperar o meu médico. Ouvi algo na TV que me chamou a atenção. Passava no jornal dicas de beleza: Truques para disfarçar pequenas imperfeições. Uma garota de 14 anos se gabava de já ter feito 2 cirurgias para correção das orelhas e nariz e estava disposta a encarar anos mais tarde um prótese de silicone
    - Para ficar mais turbinada.
Dizia a garota.
    - Eu já nem saia de casa com essas orelhas todos me chamando de “Dumbo” e duas de minhas amigas já fizeram.
 
    - Pequenas correções? E quanto às grandes imperfeições? E o Ricardo?
As mãos e os braços nem se movimentavam adequadamente por causa da pele que ficou toda grudada. Como as outras crianças iriam reagir quando o visse? Ele sorria, mas os olhos eram tristes. Passei um bom tempo pensando sobre isso.
    - Ah, pare de pensar sobre isso. Você não pode fazer nada.
Disse a mim mesmo. Mas não parei. Sabia o quarto onde ele se encontrava e fui vê-lo.
    - Oi, posso entrar?
    - Você é a esposa do doutor?
Não respondi… Não sabia o que responder.
    - Está almoçando agora?
    - Eu não tive fome mais cedo. Minha mãe mandou para mim. Sabe, eu não posso comer sozinho e a enfermeira ouviu um grito. Acho que vai nascer mais um nenê.
    - Vou te ajudar com a comida então. Qual é o seu nome?
Não sabia, mesmo, o que dizer olhando os olhinhos dele.
   - Ricardo, mas todo mundo me chama de Ricardinho.
Acho que nem ouvi a resposta. De perto pude ver as feridas, não as da pele, mas as da alma. Quis chorar, mas não pude. Quando vi, ele já estava falando sobre um sítio com patinhos e vaquinhas.
    - Você mora em um sítio, Ricardo?
    - Não, eu quero ir morar em um. Brincar com os bichinhos. Tomar banho de córrego. Andar de bicicleta. Você tem um não tem? O doutor disse que tinha e que ia me levar lá um dia.
Ele achava que eu era esposa do médico. Reparei estar de roupa branca também. Será por isso? Mas não quis contrariá-lo.
   - Sim, claro que você pode ir ao sítio. Você pode levar seus amiguinhos para jogar futebol.
   - Não.
Ele disse e não me olhou mais. Depois de certo silêncio eu criei coragem e perguntei há quanto tempo ele estava ali no hospital.
    - 3 anos.
Ele mostrou com os dedinhos enrugados e continuou:
    - Sabe, meu pai me queimou. Acho que eu o deixei muito bravo.
Respirou fundo e disse:
    - Eu não quero sair daqui.
    - Por quê?
    - Não quero jogar futebol com os meninos lá da rua. Eu sou um monstrinho. Eu tô muito feio, não tô? Eu ouvi minha mãe falar isso no celular. Lá no sítio ninguém vai me ver. E os animais não vão me chamar de monstrinho.
Ele não chorou, mas meus olhos encheram de lágrimas.  Só ai, entendi o porquê ele queria tanto ir morar num sítio. Sai de mim e falei em pensamento com Deus:
    - Deus, me diz o que eu posso fazer? Como tirar esta tristeza desse coraçãozinho? Que futuro ele terá. Não quero que ele sofra mais. O que posso dizer para uma criança com esse sofrimento?
Respirei fundo também e olhei para as mãos dele.
    - Hum… veja o que temos aqui. Você não sabe, mas você é um milagre de Deus. Você está vivinho porque Deus segurou as suas mãozinhas. Olha ai em suas mãos a marca do dedo de Deus.
Ele realmente tinha uma marca que lembrava um dedo.
    - Olha na minha mão. Eu dessa idade não tenho o sinal do dedo de Deus em minhas mãos. Ele te ama muito! Você já viu outra criança aqui com essa marca nas mãos?
    - Não.
    - Então não diga que é um monstrinho e não deixe que ninguém diga isso. Você é muito importante.  Olha lá fora. Tanto que o céu é longe e Deus veio aqui cuidar de você e ainda te deixou um sinal na mão dos dedos dele.
Ele sorriu. Não sei se me achou maluca, mas pelo menos sorriu e disse saber que eu não era mulher do doutor.
    - Se a enfermeira te pegar aqui, vão danar com você.
    - Já estou indo. Você irá esquecer de mim, mas eu não vou esquecer de você. Vou orar por você todos os dias. Não é todo dia que encontramos um menino que tem os dedos de Deus na mãozinha.
 
Sai dali e chorei bastante. Vi que a minha vida era muito fútil e que a minha dor era tão pequena. Fechei as mãos e senti aquela pele queimada entre os meus dedos. Aquele menino é uma ferida. Só uma entre tantas feridas que se encontra nos braços da humanidade. Aonde a casca vem sendo arrancada, a ferida exposta… Sangrando até que cicatrize por contra própria. Será escondida, repudiada. Na nossa sociedade removemos as imperfeições. Os diferentes são martirizados e os inocentes queimados.
    - Onde estou vivendo meu Deus?
 
Após seis meses voltei a Uberlândia para rever o meu médico e reencontrar o menino de Deus.
    - Posso ver o Ricardinho? Trouxe um presente quero só entregar, Não vou demorar.
Dessa vez pedi para ir até o quarto.
    - Ele já teve alta.
    - Onde ele mora?
    - A mãe nos pediu para não informar seu endereço para ninguém. Desculpe.
Senti uma tristeza por um instante, mas logo voltei à enfermeira e perguntei se ela podia entregar o presente quando ele voltasse ali.
    - Claro!
A enfermeira disse “claro” e virou como se eu não estivesse ali. Bem, ela estava certa. Eu não estava ali. Fui direto ao encontro dele em meus pensamentos.
    - Mesmo se ele se esquecer de mim. Eu não me esquecerei dele.
Adotei o menino sem que ele saiba. Um filho de alma. Ele sempre será querido e estará em minhas orações e novamente me peguei orando;
 
   - Deus, nada venho pedir para mim. Mas pela fé que tenho em Ti elevarei os meus olhos para os céus e procurarei pelo Teu espírito dentro do meu coração. Estou aqui em silêncio de lábios, mas com pranto de alma, pedir por um de seus filhos. Sei que têm muitos. Mas este é Ricardo. Há muitos outros, também, que sofrem, mas este eu não me cansarei de clamar por ele. Não deixe aquele pequeno crescer humilhado, não deixe que ele se torne um viciado, um malfeitor. Cure as feridas da alma e mostre a ele o caminha da paz. Dê a esse garotinho pessoas que o amem. Uma carreira onde ele possa ajudar os outros e não tenha tempo de resmungar sobre os seus próprios problemas, como às vezes eu faço. Eu como serva e tua filha por amor ao Seu Filho Jesus Cristo, com a minha fé e com toda a força do meu coração não me calarei diante dessa injustiça e clamarei pela vida desta criança enquanto houver fôlego e correr ar em meus pulmões. Estou aqui reconhecendo e exaltando Sua Majestade e poder. E que o Teu nome seja sempre exaltado entre todas as nações, mas que este menino também Te conheça intimamente como eu conheço e que ele ouça Sua voz como eu ouvi. E que ele Te ame como eu Te amo. Este não é o final da minha oração Senhor é só o começo de uma vida de petições. Salve-o pelo amor de Seu Filho Jesus que inocente também foi humilhado e sentiu dores ali naquela cruz. Obrigada por me mostrar que os meus problemas são nada. Obrigada pela minha família e todos os seres que eu amo que estão com vida ao meu redor. Obrigada por ter me apresentado o Ricardo e por eu ter tocado, em sonhos, as mãos dele."

(Lidiane Rodrigues)

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